Com apoio do Bem Diverso, alunos cursam mestrado em sustentabilidade junto a povos tradicionais para a promoção do uso sustentável da biodiversidade em seus territórios
“Acima de tudo ganhamos a experiência de sermos pesquisadores de nós mesmos”. Foi assim que a quilombola Ana Cláudia Silva resumiu a experiência dos trabalhos do mestrado profissional em “Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicionais” (MESPT), realizado pela Universidade de Brasília (UnB) em parceria com o Projeto Bem Diverso. Nesta terça-feira (3), Ana Cláudia e outros três alunos da 4a turma do curso apresentaram suas pesquisas acadêmicas durante o “II Seminário Sistemas Agroextrativistas em Territórios Tradicionais”, no Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB.
A parceria entre o Projeto Bem Diverso e o MESPT/CDS-UnB foi iniciada no ano passado com o objetivo de evidenciar a diversidade e a transformação das práticas agroextrativistas de comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais que contribuem para a conservação da biodiversidade.
Com a formação desses estudantes, o Bem Diverso busca promover o diálogo de saberes entre gestores de políticas públicas, pesquisadores e comunidades acerca do agroextrativismo em comunidades de diferentes biomas brasileiros e diversos estatutos fundiários. A expectativa é que o resultado das pesquisas embase um debate sobre as políticas públicas e inovações que possam contribuir para o desenvolvimento e promoção destas práticas.
Na busca por boas práticas
No território do Alto Rio Pardo, em Minas gerais, o mestrando Rubem de Almeida diagnosticou a participação do maracujá entre os Geraizeiros no município de Berizal. Ele, que também é produtor rural, explicou que o maracujá é uma espécie fragilizada por estar numa área que sofre degradações pela seca e, principalmente, pela devastação da paisagem para criação de gado.
Nesse cenário, a estratégia apresentada por Rubem para conservação da biodiversidade e otimização do uso da espécie vem com o aproveitamento da folha, fruto e raízes como alimento e para fins medicinais. A comunidade dos extrativistas, no entanto, esbarra em dificuldades para a legalização das agroindústrias de pequenos produtores e na falta de maquinário que propicie o desenvolvimento de outros produtos além da polpa.
O apoio tecnológico é muito bem-vindo nas comunidades e é uma preocupação do Bem Diverso. O coordenador do Projeto, Aldicir Scariot, participou do seminário e explicou que o Bem Diverso está fazendo um levantamento dos gargalos tecnológicos que existem para atacá-los sistematicamente, buscando soluções inéditas ou disponibilizando as já existentes. “Isso abre um canal que transcende o tempo de vida do Projeto [com duração até 2020], porque as pessoas passam a se conhecer. A ideia é fazer com que o pequeno agricultor chegue aos pesquisadores que trabalham nos laboratórios da Embrapa. E eles, com a formação técnica, possam ajudar a resolver cada questão”.
Valor X Preço
Na pesquisa de Ana Cláudia, a partir da relação entre plantas do Cerrado e os afazeres e saberes do povo quilombola de Mumbuca foi criada uma nova cartografia social das comunidades do Jalapão, em Tocantins. Ela defende a resistência da biodiversidade do bioma frente à pressão da monocultura da soja presente na região.
Além de macaúba, pequi, cajuí, buriti, cagaita outra dezena de espécies foram priorizadas para a pesquisa junto aos pequenos produtores locais, que trabalham com as frutas principalmente na produção de alimentos. Apesar do grande valor da biodiversidade para as comunidades, a mestranda encontrou dificuldades para precificar os produtos desses frutos, que considera um mercado ainda modesto, quando comparado ao comércio do artesanato feito com capim dourado, outro recurso natural em abundância no Jalapão.
“Encontrei alguns desafios para que possamos manter o Cerrado e nós mesmos em pé. Precisamos fortalecer o que está sob nossa governabilidade”, declarou Ana Cláudia ao apresentar algumas estratégias como o fortalecimento de parceiros e da associação e a criação de uma rota turística que englobe os frutos como principal atração (como são as trilhas até as árvores das espécies, quais as belezas naturais no caminho, como aproveitar o passeio para colher e experimentar os frutos no pé).
A relação da biodiversidade com a agregação de valor ao produto também foi tema da apresentação do ribeirinho Dadiberto Azevedo da comunidade tradicional agroextrativista Ilha do Capim, de Abaetetuba, no Pará. Para ele, o levantamento de dados referentes à produção de renda pelas famílias com o extrativismo local não foi tão complexo. Em 2017, a produção do açaí por 88 famílias (de um total de 125 na ilha) somou uma renda de R$ 1,2 milhão frente a R$ 359 mil com outras atividades de extrativismo vegetal e animal.
As fragilidades enfrentadas pelos ribeirinhos é outra, conforme identificou o mestrando: a dependência de uma única cultura na qual a cadeia produtiva é injusta para o ribeirinho. “O crescimento do açaí trouxe reflexos para a comunidade. Ter o seu cultivo como carro chefe é importante para a economia local. No entanto, é preciso entender que a forma como está sendo feita está errada, degradando as demais espécies para a sua produção exclusiva”, frisou.
A preocupação é que esse cenário inviabiliza uma grande gama de produtos que deixaram de ser produzidos a partir de outras espécies. Dadiberto defendeu em sua pesquisa um plano de utilização dos recursos naturais com regras para auxiliar na sustentabilidade da ilha. A orientação é para que o extrativismo das demais espécies seja trabalhado de forma coletiva para quando o açaí não mais gerar tamanho apelo de mercado, a comunidade não esteja fadada ao fracasso.
Novos processos
O entendimento do manejo de forma a conservar a biodiversidade da região tradicional de Salgueiro, em Pernambuco, também foi alterado com o passar do tempo. Os acordos coletivos da comunidade para a produção do umbu no quilombo da Conceição das Crioulas foi o tema da mestranda Maria Aparecida Mendes, conhecida na sua região como Cida.
Predominantemente realizado pelas mulheres do quilombo, a venda do fruto se dá em espécie, polpa ou para uso medicinal, tendo somado cerca de 10 mil quilos que geraram uma renda para a comunidade de R$ 50 mil em 2018. Mas nem sempre foi assim, a espécie era cultivada na comunidade apenas para a alimentação familiar até a década de 1970, quando começou a ser comercializado devido ao declínio da produção de algodão. Esse era o antigo acordo de uso da espécie, conforme apresentou a mestranda em sua pesquisa.
Cida explica que os acordos são normas passadas de geração em geração pela oralidade e têm força de lei na comunidade. Tanto que pelos novos acordos não se pode mais utilizar a raiz do umbu para fazer o doce chamado cuca nem “bater” a árvore para o fruto cair. Os costumes antigos foram atualizados pelas novas gerações para manter a árvore saudável, produzindo mais frutos e preservando a biodiversidade local.
A partir da pesquisa, Cida espera ajudar nas decisões dos melhores caminhos para a valorização de sua comunidade. “Pude relembrar dentro da comunidade o valor do que são os potenciais do que a natureza nos oferece como alimento, geração de renda e meio de a gente se fortalecer cada vez mais”, finalizou, agradecendo a parceria com o Bem Diverso.
Lara Aliano/ Agência MOC