Os caminhos de Antônio, conselheiro do Sertão

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Expedição da Caminhada dos Umbuzeiros desbrava a Caatinga e mostra todos seus encantos. Quem conta é a bolsista do Projeto Bem Diverso no Território da Cidadania do Sertão do São Francisco

“Andando pelo sertão, sem temor, vai em-frente” (2)

Com a proposta de imergir nas veredas e histórias do semiárido baiano, a Caminhada dos Umbuzeiros vem reunindo caminhantes de todo o Brasil, desde 2015. O percurso de 55km é realizado em três dias, saindo do município de Uauá até Canudos Velho, local onde ocorreu o Massacre de Canudos.

Meu primeiro destino é a cidade de Uauá, localizada no norte da Bahia. O município é conhecido nacionalmente como a “Capital do Bode”, referência às práticas da caprinovinocultura que movimentam a economia local, fato esse que faz os moradores garantirem que possuem a carne de bode mais saborosa da região. Uauá também tem uma notável relevância histórica. Em novembro de1896, a cidade foi palco do “primeiro fogo da Guerra de Canudos”, quando os conselheiristas – como eram chamados os seguidores de Antônio Conselheiro – e as tropas do governo federal travaram o primeiro confronto, que resultou na retirada dos militares do local.

Nosso ponto de partida para a caminhada é o mesmo local que, há 122 anos, serviu de descanso para as tropas militares. Ali, se encontravam reunidas pessoas de diversos cantos do Brasil com um único propósito: fazer o mesmo trajeto que os conselheiristas fizeram ao retornarem ao Povoado de Canudos. Assim, com o cair da tarde, fomos em direção ao nosso caminho. À medida que percorríamos as ruas da cidade, os moradores saíam de suas casas para observar o movimento. Alguns acenavam e nos desejavam boa sorte, outros apenas se limitavam a olhar ou tirar fotos.

O desafio do primeiro dia seria completar o percurso de 10km, que nos levaria a Fazenda Maria Preta, onde iríamos acampar. Com a chegada da noite, a lua cheia se escondia, timidamente, por trás das nuvens que anunciavam que uma chuva estava próxima. Assim, o caminho era iluminado por lanternas e relâmpagos que clareavam o céu do sertão.

Algumas poucas horas se passaram até chegarmos a Maria Preta, onde Seu Roque e Dona Maria Trindade nos receberam em sua casa. A luz do alpendre iluminava o terraço, onde grande parte das barracas e caminhantes se encontravam, formando uma roda desuniforme de culturas, sotaques e vivências. Enquanto isso, o silêncio da noite era cortado pelo som da flauta que conduzia a zabumba e o triangulo em harmonia num xote dançado a dois, sozinho, ou apenas no batucar dos dedos de quem acompanhava.

"Umbuzeiro do meu sertão: nasce miudinho, fica tão docinho, gera renda e gera pão" (3)

O dia amanheceu no sertão. No entanto, os primeiros raios solares estavam escondidos por trás de nuvens cinzentas e de uma garoa que perdurou durante toda a noite. Assim, o acampamento era erguido enquanto nos preparávamos para o café da manhã. Na mesa, uma fartura de comidas feitas a partir de ingredientes comuns no Semiárido: cuscuz, ovos de galinha capoeira, queijo de cabra, batata doce. Dentre eles, o que mais chamou atenção foi a umbuzada, bebida feita a partir do fruto do umbu. 

O umbuzeiro é conhecido como a “árvore sagrada do sertão”, uma vez que se adapta aos períodos prolongados de estiagem. Não à toa que o seu nome vem da palavra “ymbu” que, em tupi-guarani, significa “árvore que dá de beber”. Suas raízes formam “batatas” que acumulam água, sustentando as árvores nos tempos de estiagem. Com as primeiras chuvas, ocorre a floração do umbuzeiro.

Durante o trajeto, nos deparamos inúmeras vezes com a árvore sagrada. A caminhada coincide, não por acaso, com o período final de frutificação da planta. No sertão baiano, o extrativismo do umbu é uma importante atividade que gera renda para as comunidades rurais. Em decorrência disso, os agricultores se organizaram e criaram a Cooperativa de Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá, a COOPERCUC, que atua no beneficiamento de frutas nativas da Caatinga. Apenas nessa última colheita, foram retiradas cerca de 80 toneladas de umbu, se destacando como a maior safra dos últimos três anos.

Paisagens lindas do sertão: em dias de chuva e chão rachado (4)

Com o café da manhã tomado e acampamento desmontado, nos preparamos para o segundo dia de caminhada que nos reservava uma trilha de 22,5 km para ser percorrida. Caminhar pelas veredas do sertão baiano nos traria a oportunidade de tecer novos olhares sobre o território. Historicamente, o Semiárido Brasileiro foi representado como um espaço geográfico limitado pela existência de uma hostilidade ambiental que era associada à seca, fome e pobreza. 

O bioma Caatinga, o único exclusivamente brasileiro, é caracterizado por apresentar uma vegetação adaptada a pouca disponibilidade de água. Assim, durante os períodos de estiagem, as plantas perdem as folhas para que possam conservar a água que armazenaram, recuperando-as nos períodos chuvosos. 

A V Expedição da Caminhada dos Umbuzeiros possibilitou a construção de novos significados e olhares sobre o Semiárido. Durante os dias parcialmente nublados, éramos gratificados com a visão de uma Caatinga verde e diversa: caraibeiras, mandacarus, coroas de frade, favelas, xiquexiques, juazeiros, umbuzeiros e tantas outras espécies de plantas que se perdiam na vista. Já nos períodos noturnos, as nuvens preenchiam o céu e derramavam chuvas sobre as gentes daquelas terras.

“No Vaza Barris passou água" (5)

Ao fim dos 22,5km, o sol começava a se despedir do céu com raios que iluminavam a clareira onde iríamos acampar, no leito do Rio Vaza Barris. Em direção contrária, nuvens densas e acinzentadas se aproximavam. Aparentemente, uma chuva parecia vir ao nosso encontro. Mesmo assim, ainda fomos surpreendidos pela dimensão da tempestade. Antes mesmo de escurecer, grandes gotas d’água começaram a cair sobre a terra. O Vaza Barris que, até poucos minutos tinha sido lugar para que os caminhantes se refrescassem em suas águas calmas e rasas, agora aumentava o volume rapidamente, formando uma correnteza. 

O volume de água durante a noite foi tão inesperado que muitos dos moradores locais afirmaram que, há pelo menos sete anos, não viam o Vaza Barris tão cheio. O dia seguinte amanheceu sem chuva. No entanto, as marcas do aguaceiro da noite anterior eram visíveis. Riachos secos, pelos quais tínhamos passado no dia anterior, estavam percorrendo água como se em nenhum dia tivessem sido vazios. Devido aos últimos acontecimentos, se tornou inviável seguir para Canudos Velho, onde nossa aventura se encerraria, inicialmente. 

“A história fará sua homenagem à figura de Antônio Conselheiro”(6)

Atualmente, ao chegar a Canudos Velho, é possível ver apenas alguns escombros do povoado que, no final do século XIX, foi cenário de um massacre. 

Em 1893, chegava na beira do Vaza Barris Antônio Conselheiro que, ao ver as elevações geográficas do lugar, decidiu se estabelecer por essas bandas das quais renomearia a antiga Vila Canudos por Belo Monte. Em apenas quatro anos, o povoado se tornou palco de resistência popular contra os impostos abusivo da recém proclamada República e a exploração dos latifundiários. 

Lá, a comunidade se reproduzia a partir de uma agricultura de subsistência, desenvolvendo algumas culturas, como a mandioca e a cana-de-açúcar, das quais tiravam a farinha e a rapadura. As práticas da pecuária de pequeno porte, o artesanato e o turismo religioso também faziam parte da rotina do povoado.

As notícias sobre Canudos se espalhavam por todos os cantos. Cada vez mais famílias se mudavam para o arraial, que crescia exponencialmente ao longo das semanas, ultrapassando o número de 20 mil pessoas. No entanto, esse fluxo migratório era visto com maus olhos pelos grandes donos de terra que viam seus trabalhadores deixarem as fazendas. Como não receberam atenção das autoridades, os latifundiários começaram a difundir o medo de terem as terras invadidas. O fato se agravou quando os conselheiristas iam em busca de um carregamento de madeira – que tinha sido comprado para a edificação de uma nova igreja – em Juazeiro. Esse episódio foi o suficiente para que o juiz de Direito, Arlindo Leoni, alertasse o governo estadual de uma possível “invasão”, mesmo sem provas.

Assim, durante 11 meses, três expedições foram enviadas para acabar com o Arraial de Belo Monte, sem sucesso. O conhecimento do território e a relação com a Caatinga permitiram com que o povo de Belo Monte desenvolvesse estratégias para resistirem às investidas dos militares. Para a quarta expedição, foi preparada uma verdadeira operação de massacre, na qual as tropas federais avançavam com armamento de última geração contra camponeses. 

Assim, “em 1º de outubro [de 1987], deflagra-se o assalto final. Espalha-se querosene sobre parte do arraial, ainda ocupado pelos resistentes, e sobre ela jogam-se bombas de dinamite que, ao explodirem, ateiam fogo ao querosene, cobrindo o arraial com um lençol cheio de chamas que faz entrar em combustão casas e corpos vivos” (7). Belo Monte resistiu até o dia 5, quando foram executados seus últimos defensores: dois homens, um idoso e uma criança.

Depois de quase 122 anos, Canudos segue como um importante símbolo de resistência, sabedoria popular e vivência com o Semiárido. Para não deixar que sua história seja esquecida e dissimulada, movimentos populares têm lutado por espaços nos quais as narrativas dos que resistiram sejam amplamente difundidas.

Notas

1 Trecho adaptado da música “Antônio Penitente”, do músico Jarbas Nogueira

2 Trecho da música “Andanças de Conselheiros”, do músico Fábio Paes

3 Cantiga que era cantada durante os trechos da Caminhada dos Umbuzeiros

Trecho adaptado da música “Eu canto o Sertão”, do músico Jarbas Nogueira

5 Título da música composta por Gildemar Sena e Cláudio Barris que faz alusão ao rio que atravessa Uauá

6 Título do Cordel de Ivanildo Vila Nova

7 “O Império do Belo Monte: vida e morte de Canudos”, de Walnice Nogueira Galvão

Ingryd Hayara é bolsista do Projeto Bem Diverso no Território da Cidadania do Sertão do São Francisco e participou da V Expedição da Caminhada dos Umbuzeiros de 22 a 24 de março de 2019.

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