Cientistas usam calendário de parede para monitorar produção de açaí por ribeirinhos

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Com apoio do Bem Diverso, o calendário adaptado permite aos membros da família produtora anotar, diariamente, a quantidade de açaí consumida e vendida

Pesquisadores da Embrapa criaram uma solução simples para sanar a falta de dados sobre a coleta familiar em açaizais nativos no norte do País, que é feita geralmente em locais de difícil acesso. O grupo do engenheiro florestal Marcelino Guedes, da Embrapa Amapá, adaptou um calendário de parede para que as próprias famílias ribeirinhas possam anotar, diariamente, quanto açaí coletam e a quantidade consumida. Com a ferramenta simples, os pesquisadores descobriram, por exemplo, que algumas famílias grandes costumam consumir mais do que vender o fruto e que o consumo médio gira em torno de pouco mais de 20% do total coletado na região estudada.

A falta de dados sempre foi um desafio para os pesquisadores da área, pois apesar do aumento da comercialização do açaí e da ampliação dos estudos sobre a espécie, ainda não se tinha acesso ao volume de produção dos açaizais nativos e, principalmente, o quanto dessa coleta era consumida pelas famílias extrativistas.

Guedes informa que a lacuna nos dados pode gerar subestimativas da capacidade produtiva dos açaizais nativos, pois é comum obter os números da produção só a partir da fase da comercialização. Além disso, monitorar regiões alagadas, isoladas e de difícil acesso, onde ocorrem os açaizais, não é tarefa fácil. Para complicar, a confiabilidade das informações depende de um acompanhamento regular, praticamente diário, o que exige a permanência do coletor dos dados no local.

Ao examinar esses desafios, a Embrapa desenvolveu o calendário adaptado no qual um membro da própria família produtora anota diariamente a quantidade de açaí consumida e vendida. Guedes ressalta que esse método participativo já foi utilizado para avaliar atividade de caça, e pela primeira vez é validado para acompanhar a produção de açaí.

O procedimento não deve ser confundido com a construção participativa de calendários sazonais de produção, comuns na área agrícola. “No caso desses, são construídos a partir de relatos populares e científicos, para definir os melhores períodos para plantio e épocas de colheita das culturas. No caso do calendário do açaí, o monitoramento depende da anotação da produção pelos próprios membros da família”, esclarece o pesquisador.

Em famílias numerosas, consumo é maior do que as vendas

O método recomendado pela Embrapa resulta de uma experiência realizada com moradores agroextrativistas do Estuário Amazônico (ponto de encontro entre o rio e o mar, entre os estados do Amapá e Pará), mais precisamente da Ilha das Cinzas, município de Gurupá (PA). Analisando os dados anotados nas folhas do calendário, a equipe observou que, naquela comunidade, o consumo médio das famílias moradoras foi de 23,3% do total produzido no período de um ano e meio. Em alguns casos, de famílias mais numerosas, o volume consumido chegou a ser maior do que o comercializado.

Naquele ambiente, o método foi aplicado, testado e validado envolvendo diretamente 50 famílias durante um ano e meio, entre 2015 e 2016. Além da Ilha das Cinzas, outras comunidades demonstraram interesse nos calendários. Assim, novos calendários foram confeccionados e distribuídos em mais cinco comunidades, com apoio do Projeto Bem Diverso.

A equipe técnica recomenda que o calendário adaptado para monitoramento da produção (consumo + venda) de açaí seja institucionalizado pelos órgãos de extensão rural, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a fim de aperfeiçoar a quantificação do potencial produtivo dos açaizais nativos da região.

O formato ideal

O design e a produção gráfica são fatores importantes na elaboração do calendário adaptado para monitorar a produção de açaí. Por exemplo, é recomendado utilizar fotografias de boa qualidade que retratem não só o produto que está sendo trabalhado, como também as pessoas da comunidade. “Ao se reconhecerem no calendário, e também suas casas e amigos, as pessoas terão uma motivação extra para utilizá-los. O uso criterioso dessas fotos, que, esteticamente, podem ser valorizadas por sua função decorativa, ajuda a criar a noção de pertencimento a um trabalho em torno de algo comum, nesse caso, a cadeia produtiva do açaí”, explica o designer da Embrapa Amapá, Fábio Martins.

Um segundo aspecto relativo ao design gráfico, recomendado no Comunicado Técnico da Embrapa é a criação de uma forma intuitiva de coleta dos dados mais importantes para o trabalho de monitoramento de produção. O local reservado a cada dia do mês deve conter uma pequena tabela, com espaço suficiente para anotações, à caneta, dos dados da produção familiar. É interessante que os espaços sejam reconhecidos com facilidade por qualquer integrante da família.

Um dos desafios do design é atribuir funcionalidades ao calendário, sem torná-lo confuso e de difícil utilização. Martins lembra que informações como a tábua de marés e fases da lua, fatos importantes para comunidades ribeirinhas, foram inicialmente cogitadas para compor as páginas do calendário. “Certamente seriam um atrativo a mais para a utilização, mas um volume muito grande de informações, em um espaço relativamente pequeno, não contribuiria para a clareza e o destaque da informação que realmente importa nesse trabalho”, explica o designer.

Também é preciso observar na confecção dos calendários a produção gráfica, como formato, tipo de papel, tipo de encadernação, etc. Outro cuidado é quanto ao tamanho do calendário, para que seja fácil pendurá-lo nas casas, e que possa ser rapidamente acessado ou retirado da parede, para anotação dos dados.

Quanto ao formato-padrão de impressão gráfica, para reduzir os custos de produção o recomendado é o offset (tipo sulfite), em vez de papel couché. Este último tipo, especialmente o de brilho, é ruim para escrita com alguns tipos de caneta ou lápis. A espessura do papel mínima recomendável é de 120 gramas por metro quadrado (g/m2), podendo ser 150 g/m2 ou 180 g/m2.

Uma boa opção de encadernação é a espiral plástica, que facilita o manuseio, é de baixo custo e permite dividir o calendário em grupos menores de três, quatro, ou seis meses, otimizando o desembolso de recursos de produção gráfica e permitindo melhor acompanhamento da coleta de dados, com recolhimento dos calendários em períodos menores.

Passando as folhas do calendário

De acordo com os pesquisadores, o ponto de partida para inspirar o método de anotações diárias nas folhas do calendário surgiu da observação de que o formato de calendário anual de parede, com um mês em cada folha, é amplamente usado e bem aceito nos lares brasileiros, principalmente na zona rural. “A contagem dos dias na semana e nos meses ajuda na organização dos compromissos, especialmente para pessoas que se encontram geograficamente isoladas e dependem de longas viagens. Os ribeirinhos têm nos calendários o apoio necessário para planejamento das atividades familiares”, diz Guedes.

A simplicidade do calendário adaptado e a necessidade de envolvimento de jovens da comunidade são considerados dois pontos de destaque para explicar os bons resultados alcançados com o uso dessa ferramenta. No geral, os produtores ribeirinhos não têm o hábito de anotar a produção, e a equipe verificou que muitos têm dificuldades na leitura e escrita, enquanto os filhos apresentam grau de escolaridade compatível com a responsabilidade de anotar os dados diariamente no calendário adaptado.

A equipe ressalta que o calendário é para uso da família e que as informações sistematizadas são importantes também para a própria gestão dos açaizais.  Por isso é importante treinar a comunidade para a anotação correta e para a realização de análises. “Mesmo quando existe uma equipe técnica que pode ajudar com a sistematização, o ideal é que membros de cada núcleo familiar consigam sintetizar e analisar os dados. Para isso, também são apresentados no comunicado recomendações e exemplos de como as informações podem ser organizadas para facilitar as análises”, acrescenta o cientista da Embrapa.

Para validar a ferramenta, a Embrapa contou com parceiros como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no financiamento de bolsas para os acadêmicos; e a Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas da Ilha das Cinzas (Ataic), proponente e executora do projeto “Manejo Comunitário Integrado de Recursos Naturais no Estuário Amazônico”. Outros parceiros são a Financiadora de Estudo e Projetos (Finep), que custeou o projeto na Ilha das Cinzas; e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD/Fundo Global para o Meio Ambiente – GEF, que patrocina o projeto Bem Diverso, o qual está propiciando a ampliação do uso dos calendários para monitoramento da produção de açaí.

Jovens monitores auxiliam na coleta dos dados

O primeiro passo para monitorar a produção de açaí com o calendário adaptado é conhecer a comunidade. Para facilitar o trabalho, é recomendado selecionar jovens monitores no próprio local. Eles devem ter perfil adequado, como dinamismo e facilidade de interação com as famílias, e participar de treinamentos sobre a aplicação dos calendários e o mapeamento participativo e apoio em logística, entre outros benefícios. “O ideal é que o monitor seja selecionado previamente e acompanhe a distribuição dos calendários com a equipe técnica”, recomenda Marcelino Guedes.

No caso da Ilha das Cinzas, o monitoramento do preenchimento dos calendários foi realizado por meio de visitas de jovens da própria comunidade. Com a recente expansão da atividade para as áreas de açaizais de Afuá (PA), também no Estuário Amazônico,  foram treinados mais seis jovens monitores por meio do Projeto Bem Diverso. Um deles é Rozana do Carmo Pereira, 24, de uma família de agroextrativistas da comunidade São Francisco de Assis, ilha Salvadorzinho (Afuá) conhece bem as peculiaridades da região. Ela passou por uma seleção concorrendo com quase 30 inscritos. “Eu procurei fazer parte desse trabalho porque ele é muito importante para a comunidade e para o município como um todo. Nós nunca fizemos isso antes, agora vamos saber quanto tem de produção e de consumo de açaí nas nossas comunidades. Distribuí 50 calendários, fizemos as orientações com as famílias e agora estamos acompanhando as anotações”, declara Rozana.

Primeiro, a equipe da pesquisa anotou os nomes dos responsáveis de cada núcleo familiar e o respectivo número de áreas com açaizais manejados. Marcelino Guedes afirma que é importante saber se o açaizal é de uso coletivo (por várias famílias), com parentesco comum ou não, e se a família coleta em vários açaizais. Também é necessário registrar se há algum sistema de divisão de produção, quando uma família solicita que outros façam a coleta na sua área.

Essas observações sobre as áreas produtivas facilitam a interpretação dos dados que serão coletados e contribui para evitar sobreposição ou subestimação dos números.

As informações coletadas nas visitas devem ser sistematizadas em uma lista em planilha eletrônica. Cada linha deve corresponder a um núcleo familiar, com o nome do responsável e as informações básicas sobre os açaizais. Cada família e cada açaizal devem ser identificados por códigos. Por exemplo, C1 para casa 1, e C1A1, para o açaizal 1 da casa 1. Se houver mais áreas, coloca-se C1A2 (açaizal 2 da casa 1), C1A3, e assim por diante.

De acordo com a publicação da Embrapa, essa codificação facilita uma correta análise sobre a produtividade de cada açaizal e facilita a identificação dos açaizais pelos próprios agroextrativistas.

Dulcivânia Freitas, Embrapa Amapá 

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